A construção do facto científico
A Ciência não é um monumento rígido e imutável, mas antes um processo (em constante transformação), uma tentativa de compreender e explicar os fenómenos. Desenvolvendo-se progressivamente, a ciência é hoje entendida como uma construção racional, assente fundamentalmente em dois planos: o experimental e o lógico-matemático.
«A Ciência não aparece como a simples constatação de uma verdade dada, que se encontraria ou revelaria, mas como ma produção de conhecimentos.»
L. Althusser
«Na vida científica os problemas não se põem por si mesmos. Para um espírito científico, todos os conhecimentos são uma resposta a uma interrogação, a uma questão. Não havendo interrogação, não pode haver conhecimento científico. Em ciência, nada acontece por si, nada nos é dado, tudo é construído.»
G. Bachelard
Ao mundo percebido[1] a Ciência substitui um mundo construído. Essa construção é ao mesmo tempo conceptual (teórica) e técnica[2].
«Por oposição à percepção imediata, o conhecimento científico transforma as qualidades em quantidades (o aparecimento da ciência é o aparecimento da medida; em vez do “vivido” sonoro e colorido, a ciência descobre vibrações das quais se pode medir o comprimento de onda, a frequência). À diversidade empírica, a ciência substitui a unificação racional. Para a Química, os corpos infinitamente diversos reduzem-se a uma centena de corpos simples, susceptíveis de se combinarem de diversas formas.»
D. Huisman e A. Vergez
«A ciência moderna é racional, isto é, não consta de elementos empíricos, mas é essencialmente uma construção do intelecto.»[3]
F. Selvaggi
O conhecimento científico como rectificação do saber e aproximação da verdade
«Não há nas ciências experimentais, nem mesmo na Matemática, posições definitivas e irreformáveis. Toda a verdade científica aparece, em certo sentido, como provisória, susceptível de revisão, de aperfeiçoamento, às vezes mesmo de uma completa reposição em causa. Todosos conhecimentos científicos são aproximados.»
F. Selvaggi
Revisibilidade - A Ciência tem necessidade de revisões e de correcções; a Ciência procede por aproximações sucessivas.
A Ciência, como forma de mentalidade, opõe-se à mentalidade dogmática e mítica: nada considera sagrado e absoluto, tudo profana e relativiza. A Ciência é crítica e anti-dogmática. Todos os factos estão sujeitos à dúvida; as asserções têm de fundamentar-se lógica e experimentalmente. Na atitude científica problematiza-se tudo, mesmo as “evidências”.
Em Ciência, o problema do erro tem primazia sobre o problema da verdade. O erro é importante para que o cientista se possa aproximar da verdade: é pela constatação e eliminação/rectificação dos erros que a Ciência se vai aproximando da verdade. Diz-nos Bachelard: «Não há verdades primeiras, mas erros primeiros»; «Conhece-se contra um conhecimento anterior, destruindo-o.»
A razão científica é polémica[4] e não arquitectónica[5]. Afirma ainda Bachelard: «A verdade só ganha sentido ao fim de uma longa polémica». O conceito “polémica” refere-se precisamente ao carácter de não acabamento da ciência: o conhecimento científico é aproximado, aberto e dinâmico; não há saberes definitivos, tudo é provisório e em permanente reconstrução.
A Ciência como obra colectiva e interdisciplinar
Há muito que a ciência deixou de ser actividade de personalidades isoladas para consistir no trabalho de investigadores apoiados em grupos e auxiliares. Hoje é indispensável o diálogo entre todos os cientistas, tanto da mesma área de investigação como de áreas complementares e até distintas.
A Ciência deve evitar o pragmatismo e assumir-se como atitude problematizadora
«Hoje, o perigo maior que a ciência corre é o chamado pragmatismo[6]. As grandes revoluções no viver dos homens derivam tanta vez de pesquisas e construções teóricas de que não se esperariam tais resultados. Acima de tudo, a ciência tem de insuflar nos homens uma maneira de pensar e de encarar as coisas, a tensão problematizadora, e de os levar a compreender o universo em que se situam e a própria humanidade. Ela vale principalmente como atitude, forma de mentalidade, e como sistema explicativo do mundo, racionalmente acessível, testável nas suas explicações.»
Vitorino Magalhães Godinho .
Tarefa
Destaque as ideias essenciais do texto que a seguir se apresenta:
«(…) a ciência é muito mais mutável do que a teologia. O problema tem uma primeira resposta extremamente clara: a teologia, baseando‑se no inverificável, pode ter uma grande estabilidade; em contrapartida, a ciência faz surgir incessantemente dados novos que contradizem e tornam obsoleta a teoria estabelecida. O aparecimento de dados novos necessita de teorias mais latas ou diferentes. Estes novos dados surgem de forma non‑stop, porque o movimento da ciência moderna é ao mesmo tempo um movimento de aperfeiçoamento dos instrumentos de observação e de experimentação (desde a luneta de Galileu até ao radiotelescópio e aos instrumentos de detecção para uso dos satélites e dos viajantes do espaço). Viu‑se bem o que aconteceu com a exploração de Saturno: as observações feitas anteriormente não eram falsas; eram totalmente insuficientes e, assim, induziam teorias erróneas.
Não há apenas o problema dos dados que mudam as teorias; a própria visão das teorias muda. Karl Popper disse que as teorias não são induzidas dos fenómenos, mas são construções do espírito, mais ou menos bem aplicadas ao real, isto é, são sistemas dedutivos. Por outras palavras, uma teoria nunca é, enquanto tal, um 'reflexo' do real. A partir daí, uma teoria científica é admitida, não por ser verdadeira, mas por resistir à demonstração da sua falsidade. Popper concebe assim a história das teorias científicas em analogia com a selecção natural: são as teorias mais adaptadas à explicação dos fenómenos que sobrevivem, até que o mundo dos fenómenos dependente da análise se alargue e exija novas teorias. Aqui, Popper inverteu a problemática da ciência; julgava‑se que a ciência progredia por acumulação de verdades; ele mostrou que a progressão se faz sobretudo por eliminação de erros na procura da verdade.
Thomas Kuhn mostrou claramente no seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas que a ciência evolui não só 'progressivamente', não só 'selectivamente', mas também 'revolucionariamente', por revoluções ao nível dos princípios de explicação, ou paradigmas, que comandam a nossa visão do mundo(…)
Descobrimos que a verdade não é inalterável, mas frágil, e creio que esta descoberta, como a do cepticismo, é uma das maiores, das mais belas, das mais comovedoras do espírito humano. Num dado momento, percebe‑se que se pode pôr em dúvida todas as verdades estabelecidas. Mas, ao mesmo tempo, o cepticismo ilimitado comporta a sua autodestruição, visto que a proposição 'não existe verdade' é, de facto, uma proposição sobre a ausência de verdade; e é uma afirmação que tem o mesmo carácter dogmático e absoluto que as verdades condenadas em nome do cepticismo.
É interessante ver que o problema do erro transforma o problema da verdade, mas não o destrói; a verdade não é negada, mas o caminho da verdade é uma busca sem fim; cabe a cada um a escolha; os caminhos da verdade passam pela tentativa e o erro; a busca da verdade só pode fazer‑se através da errância e da itinerância[7](...)
No domínio teórico, as verdades mais fundadas são as que se fundam nesta negatividade, isto é, as que são os antierros; é aí que o antierro se torna uma verdade; é este o sentido da ideia popperiana e é a grandeza da aventura científica, (…)
Qual é a diferença entre a teoria e a doutrina? É que a teoria é aberta e aceita arriscar a sua própria morte na refutação, enquanto a doutrina se fecha e encontrou a sua prova de uma vez para sempre na sua fonte, que se torna um dogma: a autoridade dos pais fundadores; é por isso que o dogma recita incessantemente as palavras dos seus pais fundadores! (…)»
Edgar Morin, Ciência com Consciência.
[1] Mundo percebido = realidade espontânea e passivamente observada.
[2] Criam-se artifícios técnicos para transpor a observação no campo espacial e visual (por exemplo, a sensação muscular do peso, subjectiva imprecisa, é substituída pela apreciação visual da posição da agulha na balança). A observação científica supõe instrumentos, requer uma manipulação. O instrumento pressupõe, por sua vez, uma teoria (por exemplo, o termómetro pressupõe a teoria da dilatação). Como diz Bachelard: «Um instrumento é uma teoria materializada.»
[3] A Ciência, ao marginalizar o mundo do conhecimento imediato dos objectos, constrói ela própria outros objectos e outro mundo.
[4] Polémica - refere-se aos movimentos de rectificação sucessivos.
[5] Arquitectónica - como se fosse uma estrutura fixa, imóvel.
[6] Pragmatismo - doutrina que estabelece como critério de verdade a utilidade e a fecundidade das teorias/conhecimentos.
[7] Itinerância – refere-se à constante procura de novos caminhos, métodos.